Toda a gente, mas mesmo toda a gente, tem uma fada madrinha. Sem exceção.
E agora lá vem a pergunta:
- Será que eu tenho uma fada madrinha?
ou
- Mas para que é que serve uma fada madrinha?
ou ainda
- Posso pedir coisas à minha fada madrinha?
Pois é: uma fada madrinha não é para se andar a pedinchar presentes, nem para uma pessoa se andar a queixar
- Ai que dei um jeito aqui nas costas!
ou
- Esfolei o joelho a correr no recreio e está-me a arder...
nem
- O que eu gostava era que a mamã me desse um telemóvel novo. Ou um mano novo, tanto faz.
Nada disso.
As fadas madrinhas são uma coisa muito séria. Mesmo muito séria.
É verdade.
Por isso não se pode andar aí a fazer perguntas sobre as fadas madrinhas. E aqui não se vai dar respostas a nenhumas perguntas sobre as fadas madrinhas.
É bom que isto fique claro de uma vez por todas. Claro como água.
As fadas madrinhas vivem todas numa terra que é a terra das fadas madrinhas. É uma terra especial porque nela não há bichos com penas.
As fadas madrinhas detestam bichos com penas. Não é por lhes terem alergias nem nada disso, mas apenas porque as penas lhes metem impressão.
E também por outro motivo. É que as fadas madrinhas voam. Andam pelo ar de um lado para o outro a tomar conta dos seus afilhados e das suas afilhadas, a protegê-los a eles e a elas. Exceto quando se atrasam, porque uma das características das fadas madrinhas é não usarem relógio e serem muito distraídas, por isso atrasam-se com frequência. Ou seja, todos os dias.
Mas ainda há outro problema: quando andam a voar de um lado para o outro, às vezes as fadas madrinhas chocam com os pássaros, sobretudo com as pombas, que, além de não respeitarem ninguém, são teimosas e estúpidas e não se desviam para deixar passar as fadas madrinhas.
É bem conhecida de toda a gente a história da Silveirinha, a fada madrinha que, quando ia pelo ar, uma vez deu uma cabeçada numa águia careca, que são umas águias que há nos Estados Unidos, que para quem não sabe é um país que fica na América, que é um continente muito grande que era desconhecido de toda a gente, exceto dos americanos que lá viviam e a quem depois chamaram índios, antes de um senhor chamado Colombo lá ter chegado no ano de 1497, ou seja, há muito, muito tempo, e este país é formado por uns estados muito juntinhos, como se houvesse vários Portugal assim ao lado uns dos outros, ou uns por cima e outros por baixo, e que tivessem decidido juntar-se bem juntinhos para se sentirem mais aconchegados e terem mais amigos para brincar.
O que aconteceu foi que um dia a Clarinha, a fada madrinha, decidiu arranjar uma galinha.
- Uma galinha?
- Pode-se saber porquê?
- E para quê?
- Como é que se chamava a galinha?
Isto aqui antes foram as perguntas que podem ter passado pela cabeça a quem estava a seguir esta história.
Uma vez que naquela terra não havia bichos com penas, também não havia galinhas, apesar de as galinhas não voarem grande coisa e por isso não fazerem parte da bicharia mais detestada pelas fadas madrinhas. O resultado é que ninguém podia comer ovos estrelados, ou ovos mexidos ou cozidos, nem omoletas ou suflês, e muito menos bolos, que toda a gente sabe que precisam de farinha, açúcar e... ovos.
Então um dia apareceu a galinha Susaninha lá na terra das fadas madrinhas. Era amarelinha e preta. No resto era como as outras galinhas, que toda a gente sabe como são.
Outra coisa que toda a gente sabe é que os bichos com penas são muito porcalhões e fazem cocó por todo o lado. Às vezes até largam umas bombas lá do alto.
Vai uma pessoa sentar-se numa esplanada e zás!, leva com porcaria na cabeça. Está uma pessoa a entrar em casa e pimba!, cocó pelas costas abaixo. Vai uma menina a sair toda bem vestida para um casamento ou um batizado, ou outra festa qualquer daquelas onde as meninas levam os seus melhores vestidos, e catrapus!, ias à festa, não ias?, pois agora já não vais com essa roupinha.
Por estas e por outras a galinha Susaninha tinha a sua casa de banho privativa, que é assim uma coisa especial só para a pessoa usar, neste caso não se trata de uma pessoa mas de uma galinha, mas vai dar ao mesmo.
O resultado disto tudo é que a galinha Susaninha era muito asseadinha, ou seja, era muito limpinha. Isto tanto quanto uma galinha consegue ser, que é mais do que um elefante mas menos do que uma lagartixa, mais do que um porquinho da Índia mas menos do que um ornitorrinco, mais do que um hipopótamo mas menos do que uma formiga.
E era asseadinha porque as suas instalações sanitárias eram limpas todos os dias, aliás várias vezes por dia, porque as galinhas são um bocado descuidadas e quando lhes dá vontade nem sempre conseguem ir a correr para a sanita e por isso lá vai disto e fazem aqui e acolá sem se ralarem muito com as consequências.
Há ainda mais um problema: é do conhecimento geral que as galinhas se recusam a usar papel higiénico. Quem já foi fazer compras a um supermercado terá provavelmente reparado que no local onde o papel higiénico está à venda nunca se viu papel higiénico para galinhas. Nunca. Nem um rolo para amostra. Nadica de nada.
Por tudo isto, quando foi anunciada a vinda da galinha Susaninha, esta foi a reação das fadas madrinhas:
- Uma galinha!? - Exclamaram em coro, que é quando várias pessoas falam ou cantam ao mesmo tempo, exclamaram em coro, pois, a Vianinha, a fada madrinha, mais a Joaninha, a fada madrinha, e ainda a Luizinha, a fada madrinha. Para já nem falar da Guidinha, a fada madrinha, da Rosinha, a fada madrinha, ou da Fatinha, a fada madrinha.
- Faz-se uma canja - afirmou a Mariazinha, a fada madrinha.
- Uma cabidela - sugeriu a Francisquinha, a fada madrinha, prima da Mariazinha, a fada madrinha.
- Muamba, uma muamba era o que me apetecia! - Exclamou a Carlinha, a fada madrinha, que há algum tempo que não voava para África e andava com saudades da comidinha daquelas bandas.
- Nada disso. - Rematou a Clarinha, a fada madrinha. - A galinha Susaninha é minha convidada, por isso eu é que decido.
Por estas e por outras, a vida da galinha Susaninha em casa da Clarinha, a fada madrinha, era uma vida normal.
Claro que não ia à escola, porque as galinhas já cresceram a saber tudo o que uma galinha precisa de saber, isto para além de terem um emprego para o resto da vida, que é o mesmo para todas as galinhas, por isso escusam de estudar para serem eletricistas ou esteticistas, para serem cozinheiras ou passarinheiras, ou outra coisa qualquer. Nunca se viu uma galinha eletricista. Diga-se que também nunca se viu uma galinha canalizadora ou agente da polícia judiciária, e muito menos vestida de bombeira. Mas há quem diga que há sempre uma primeira vez para tudo, por isso nunca se sabe.
Corre para aí a história de umas galinhas que eram artistas de circo, mas tinham-lhes roubado os cartões de cidadão e os patrões eram uns grandes aldrabões e nunca lhes tinham feito os descontos para a Segurança Social, que é uma coisa obrigatória para toda a gente que trabalha para que, mais tarde, quando forem velhinhos, possam receber uma reforma.
Foi por isso que as galinhas artistas nunca conseguiram provar nada e em vez de se reformarem tiveram que voltar ao antigo emprego de galinhas normais.
De vez em quando, mas só de vez em quando, para não se cansar, a galinha Susaninha punha um ovo.
E era uma festa em casa da Clarinha, a fada madrinha.
Antes, como não havia galinhas na terra das fadas madrinhas, os únicos ovos que havia eram a fingir, assim umas coisas com o formato de um ovo que davam para fazer uns truques de magia, transformá-los em papelinhos brilhantes, ou em lencinhos coloridos, ou em bolinhas de berlindes ou outra coisa qualquer. Tal como as varinhas de condão que as fadas madrinhas usam.
- Varinhas de condão?
- O que é um condão? Uma coisa de comer? Com açúcar e tudo? Azul, amarela, verde, vermelha, cor-de-rosa, laranja, lilás, beje, grená, ciano, magenta, púrpura, carmim, turquesa, fúcsia, e muitas mais cores, desde as mais comuns às mais raras e estranhas?
Isto é o que pode passar pela cabeça de quem nunca viu sequer uma varinha de condão. Nem umazinha para amostra.
Condão é uma palavra estranha. Como muitas outras. Já alguém pensou bem na palavra bidé? Mais estranha que isto há de ser difícil.
Condão quer dizer um poder ou uma capacidade, por exemplo quando uma pessoa tem o condão de fazer rir as outras, ou de as fazer felizes, ou ainda, como no caso das varinhas, um poder especial, mágico, sobrenatural, que pode fazer o bem ou o mal, isto se pensarmos que pode haver fadas mázinhas ou bruxinhas malandrinhas.
Claro que nem com varinhas de condão as fadas madrinhas conseguiam fabricar ovos. Por isso comiam tartes de maçã atrás de tartes de maçã.
- Tartes de maçã?
Toda a gente sabe, se não sabe fica a saber, que as tartes de maçã não levam ovos e, como as fadas madrinhas não tinham ovos dos verdadeiros, só tinham ovos de brincar, era impossível cozinhar certas coisas.
Era por isto que, quando a galinha Susaninha punha um ovo lá em casa, Clarinha, a fada madrinha, dava uma grande festa, porque um único ovo da Susaninha dava para fazer 310 omoletas, 152 ovos estrelados, 575 ovos mexidos, 623 suflês, e 3 mil e tal bolos variados. E ainda sobravam claras para fazer 377 suspiros e gemas para 498 musses de chocolate, isto se não se tivessem esquecido de comprar umas tabletes de chocolate, é claro.
Parece muita coisa com um só ovo, mas não é, não, porque é preciso não nos esquecermos de que estamos na terra das fadas madrinhas, que é uma terra diferente das terras das pessoas normais, daquelas que toda a gente encontra no dia-a-dia.
Ainda por cima temos de imaginar que as fadas madrinhas são muito pequeninas, só se veem com um microscópio, que é um aparelho usado pelos cientistas para verem coisas muito, mas mesmo muito pequenininhas, e também é por isso que poucas pessoas disseram que já tinham visto alguma vez uma fada madrinha, de tão pequeninas que são, mais do que uma mosca, que se fossem do tamanho de moscas se calhar as pessoas davam-lhes com um mata-moscas, ia ali uma coisa a voar e dei-lhe, zás, pás, se calhar era um mosquito ou uma melga, se fosse mosca ia a zoar, se fosse mosquito ia a zumbir, que é o barulho que fazem as moscas e os mosquitos, que são sons muito diferentes, é verdade, sim senhora, ou sim senhor, se fosse pato grasnava, se fosse urso bramia, se fosse cavalo relinchava, se fosse elefante bramia, se fosse camelo blaterava, vejam só, que palavra estranha, blaterar, mas também não é de estranhar, porque os camelos são bichos muito estranhos, e por aí fora, se agora nos puséssemos aqui a contar o que faz a bicharada toda ficávamos aqui até ao século vinte e dois, que é o que vem a seguir a este em que estamos agora, que é o século vinte e um, em números romanos escreve-se com um X, que quer dizer dez, mais outro X, dois xis seguidos querem dizer vinte, e um I, que quer dizer um, e outro I, e um mais um significa dois. Então vinte e dois: Xis, xis, i i. Se fosse vinte e um seria XXI, dois xis e um i. Tudo escrito com letras maiúsculas, que é assim que se deve escrever os números romanos, que não usavam o zero porque não o conheciam, foram os árabes que o inventaram, e quem sabe fazer contas pode imaginar o que seria somar, diminuir, multiplicar ou dividir sem usar o zero. Uma confusão, com certeza. Ai não que não era.
A festa ia rija em casa da Clarinha, a fada madrinha, pudera, com tanta papa e tanta bolaça, não era para admirar, pois então, e ainda há mais uma razão de que não se falou aqui, se calhar ficou esquecida no meio de tanta conversa, é que as fadas madrinhas são muito comilonas, comem muito, o que não é assim muito saudável, e deve ser por isso que na terra das fadas madrinhas existem 723 Spas, que são assim uns lugares com águas que fazem bem à saúde, com massagens, tratamentos à pele.
Isto para além da mania das dietas. As fadas madrinhas passam a vida a falar de dietas, a discutir dietas, a pensar em dietas ou a ler sobre dietas. Já a fazer dietas nem por isso, porque já dissemos que as fadas madrinhas são muito gulosas e comilonas. E também já sabemos que são muito esquecidas, por isso quando vão comer depois nem se lembram de fazer dieta.
E é preciso não esquecer que as fadas madrinhas são muito vaidosas e gostam muito de parecer bem, principalmente porque passam a vida a criticar-se umas às outras, estás assim e estás assado, pareces mais magra, tenho a impressão que estás mais gorda, o verde fica-te mal, o azul fica-te mesmo mal, o encarnado então é melhor nem dizer nada, de amarelo pareces um canário, se calhava alguma vestir-se de cor de laranja lá vinha um "Olha, vai ali uma laranja, agora até tem perninhas e anda para a frente e para trás".
Imagine-se que até os bolos das festas em casa da Clarinha, a fada madrinha, eram objeto de apreciações críticas:
- Outra vez bolo de chocolate? - dizia uma.
- Então quando é que temos um bolinho de amêndoa ou de noz? - dizia outra.
- Ou uma tartezinha recheada? Ou um docinho de ovos? Uns ovos moles? - sugeriam outras.
E de vez em quando lá vinham uns bolos de amêndoa ou uns bolos de noz, estes mais raros que aqueles, umas tartes de ovos, uns ovos moles, até bolos de gelado, de amendoim, de ananás, de laranja, de quivi, de cenoura, de figo, de tangerina, de pêssego, de sardinha...
- De sardinha? Bolo de sardinha? Que nojo!...
Bolo de sardinha, pois. Foi uma experiência. Para variar. Mas é preciso que se diga que não foi lá muito apreciado.
Assim se iam passando os dias na terra das fadas madrinhas. Uns dias eram de festa, outros assim-assim, e outros ainda nem sim nem não, e a galinha Susaninha lá ia pondo um ovo de vez em quando, e a Clarinha, a fada madrinha, ia fazendo bolos e outros cozinhados para as gulosas das fadas madrinhas que viviam ali perto da Clarinha, a fada madrinha.
O pior é que iam ficando cada vez mais gordas. E já tinham dificuldade em voar.
Mas isso é outra história. E fica para outra vez.
João Carlos Rezendes Costa
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