ARRE, que tanto é muito pouco!
ARRE, que tanto é muito pouco!
Arre, que tanta besta é muito pouca gente!
Arre, que o Portugal que se vê é só isto!
Deixem ver o Portugal que não deixam ver!
Deixem que se veja, que esse é que é Portugal!
Ponto.
Agora começa o Manifesto:
Arre!
Arre!
Oiçam bem:
ARRRRRE!
Álvaro de Campos
(Fernando Pessoa)
TELEFONEMA
Telefonaram-lhe para casa e
perguntaram-lhe se estava em
casa.
Foi então que deu pelo facto.
Realmente tinha morrido havia já
dezassete dias.
Por vezes as perguntas estúpidas são de extrema utilidade.
Mário Henrique Leiria
FALA
Fala a sério e fala no gozo
Fa-la p'la calada e fala claro
Fala deveras saboroso
Fala barato e fala caro
Fala ao ouvido fala ao coração
Falinhas mansas ou palavrão
Fala a miúda mas fala bem
Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe
Fala franciú fala béu-béu
Fala fininho e fala grosso
Desentulha a garganta levanta o pescoço
Fala como se falar fosse andar
Fala com elegância muita e devagar.
Alexandre O’Neill
TERROR DE TE AMAR
Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.
Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.
Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.
Sophia de Mello Breyner
RIFÃO QUOTIDIANO
Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia
chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a
é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece
Mário Henrique Leiria
ESCREVIAS PELA NOITE FORA
Escrevias pela noite fora. Olhava-te, olhava
o que ia ficando nas pausas entre cada
sorriso. Por ti mudei a razão das coisas,
faz de conta que não sei as coisas que não queres
que saiba, acabei por te pensar com crianças
à volta. Agora há prédios onde havia
laranjeiras e romãs no chão e as palavras
nem o sabem dizer, apenas apontam a rua
que foi comum, o quarto estreito. Um livro
é suficiente neste passeio. Quando não escreves
estás a ler e ao lado das árvores o silêncio
é maior. Decerto te digo o que penso
baixando a cabeça e tu respondes sempre
com a cabeça inclinada e o fumo suspenso
no ar. As verdades nunca se disseram. Queria
prender-te, tornar a perder-te, achar-te
assim por acaso no meu dia livre a meio
da semana. Mantêm-se as causas iguais
das pequenas alegrias, longe da alegria, a rotina
dos sorrisos vem de nenhum vício. Este abandono
custa. Porque estou contigo e me deixas
a tua imagem passa pelas noites sem sono,
está aqui a cadeira em que te sentaste
a escrever lendo. Pudesse eu propor-te
vida menos igual, outras iguais obrigações.
Havias de rir, sair à rua, comprar o jornal.
Helder Moura Pereira
QUADRAS
A abanar o fogareiro
Ela corou do calor.
Ah, quem a fará corar
De um outro modo melhor!
A caixa que não tem tampa
Fica sempre destapada
Dá-me um sorriso dos teus
Porque não quero mais nada.
A laranja que escolheste
Não era a melhor que havia.
Também o amor que me deste
Qualquer outra mo daria.
A luva que retiraste
Deixou livre a tua mão.
Foi com ela que tocaste,
Sem tocar, meu coração.
A tua boca de riso
Parece olhar para a gente
Com um olhar que é preciso
Para saber que se sente.
A vida é pouco aos bocados.
O amor é vida a sonhar.
Olho para ambos os lados
E ninguém me vem falar.
O guardanapo dobrado
Quer dizer que se não volta.
Tenho o coração atado:
Vê se a tua mão mo solta.
Adivinhei o que pensas
Só por saber que não era
Qualquer das coisas imensas
Que a minh'alma sempre espera.
Andei sozinho na praia
Andei na praia a pensar
No jeito da tua saia
Quando lá estiveste a andar.
Bailaste de noite ao som
De uma música estragada.
Bailar assim só é bom
Quando a alegria é de nada.
Olhas para mim às vezes
Como quem sabe quem sou.
Depois passam dias, meses,
Sem que vás por onde vou.
O teu cabelo cortado
A maneira de rapaz
Não deixa justificado
Aquele amor que me faz.
Comes melão às dentadas
Porque assim não deve ser.
Não sei se essas gargalhadas
Me fazem rir ou sofrer.
Compreender um ao outro
É um jogo complicado.
Pois quem engana não sabe
Se não estava enganado.
Por muito que pense e pense
No que nunca me disseste,
Teu silêncio não convence.
Faltaste quando vieste.
Ouves-me sem me entender.
Sorris sem ser porque falo.
É assim muita mulher.
Mas nem por isso me calo.
Depois do dia vem noite,
Depois da noite vem dia
E depois de ter saudades
Vêm as saudades que havia.
Quando vieste da festa,
Vinhas cansada e contente.
A minha pergunta é esta.
Foi da festa ou foi da gente?
Dei-lhe um beijo ao pé da boca
Por a boca se esquivar.
A ideia talvez foi louca,
O mal foi não acertar.
Quando ao domingo passeias
Levas um vestido claro.
Não é o que te conheço
Mas é em ti que reparo.
Quando eu era pequenino
Cantavam para eu dormir.
Foram-se o canto e o menino.
Sorri-me para eu sentir!
Tenho vontade de ver-te
Mas não sei como acertar.
Passeias onde não ando,
Andas sem eu te encontrar.
Era já de madrugada
E eu acordei sem razão,
Senti a vida pesada.
Pesado era o coração.
Fernando Pessoa
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